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Por Lilia dos Santos Seabra

BRAUDEL, F. os Jogos da Troca. In: . A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 27-50.

Nesta obra, Fernand Braudel está empenhado em apontar os condicionantes que levaram o capitalismo a constituir-se em um fenômeno genuinamente e majoritariamente ocidental. Para tanto, fortalece sua tese geral de que o capitalismo esteve, em sua gênese, no mundo ocidental, apoiado em condições pré-existentes de longa duração, que o alimentaram em seu crescimento, até atingir a maioridade e independência. A emergência do capitalismo é, então, um fenômeno resultante de um parasitismo oportunista, que soube aproveitar das situações concretas materiais, sociais, políticas e simbólicas já constituídas. O capitalismo, segundo Braudel, nada criou. Contudo, com eficiência, deixou-se sustentar por conjunturas, que ora pendiam e colaboravam para o seu desenvolvimento, ora se constituíam como empecilho.

Com esta proposta — de explanar acerca dos condicionantes do triunfo do capitalismo — Braudel pontua algumas questões cruciais para iniciar seu diálogo com o leitor e introduzi-lo na histórica querela da formação do capitalismo no mundo moderno. Fala, em especial, com o historiador, que embora já exausto de tal discussão, permanece, segundo Braudel, limitado no entendimento da questão em pauta, na seara da incompletude da história econômica, Evidencia com isso, que a discussão não acabou; principalmente se observada sob diferente enfoque epistemológico e metodológico.

Para a construção de sua tese, o autor distribuiu suas discussões em quatro sessões: na primeira esteve preocupado em abordar questões pertinentes à economia de mercado; bem como o papel encantador e valorizado que esta teve (e ainda tem) junto aos historiadores. Para Braudel, a economia de mercado constitui, apenas, uma parcela da vida material que, sem cerimônias, ocupou as reflexões de economistas e historiadores, que se debruçaram sobre os fluxos de mercadoria, sobre os sistemas de troca, dando à economia de mercado uma onipotência indestrutível sobre todas as demais dimensões da vida social.

Nesta sessão do trabalho, o autor é cauteloso quanto à competência da economia de mercado em se auto-regular e tudo controlar. Ela (economia de mercado) é reduzida a charneira de contato entre produção e consumo, e o autor sabe que existem outras dimensões que compartilham com ela as determinações da vida material e social. Aqui, Braudel prepara o leitor para discernir "economia de mercado" de "capitalismo", mostrando que ambos "setores" não podem ser confundidos. Aponta que entre produção p e consumo existem outras forças da vida material, espiritual, cultural e simbólica que estão no jogo da troca, compondo a lógica sistêmica do capitalismo.

A insistência de que existe diferença entre "economia de mercado" e "capitalismo" é a questão pertinente à segunda sessão desta obra. Em todo o trabalho, o autor está na observação de que existem certos processos, que estão acontecendo, entre os séculos XV e XVIII, e que não podem ser chamados, de forma resumida e pouco reflexiva de "economia de mercado". Neste sentido, o termo "capitalismo" aparece para o autor como a palavra que busca dar conta de um conjunto de forças no joga da troca, que extrapola o simples trânsito entre produtor e consumidor. Desta forma, o capitalismo é uma economia de mercado que; contudo, não se constrói, exclusivamente por ela.

O autor reconhece, na terceira sessão desta obra, que a economia de mercado está presente cm diversas sociedades, em tempos históricos diversos. Reconhece, entretanto, que existem (luas formas de economia de mercado: aquela que atua em curtas distâncias, com trocas cotidianas; onde o comerciante é especializado e tem o domínio do processo, que vai da produção ao consumo. Considerou estas trocas "transparentes", porque estão reguladas pelos atores sociais do mercado em questão, onde as mesmas se dão em função dos valores de uso dos produtos. A outra forma é aquela que se construiu pela transgressão às ordens do public market: a economia privada. Aqui está, em Braudel, o lugar da gênese do capitalismo. E aqui que está presente a figura do atravessador, do comerciante, que tem o domínio de todo processo do mercado a longa distância, criando um grande hiato entre produção e consumo. Este "hiato" entre produção e consumo é preenchido pelas diversas atividades que o comerciante assume, com lucros constantes, minimizando perdas.

É através da diversificação das atividades e do domínio do processo de mercado, que o comerciante realiza a acumulação privada do capital - um capital que se expressa pelo domínio de bens e patrimônios (bens de capital). Junto a ele, se estrutura uma sociedade, com membros que se hierarquizam em diferentes funções e ofícios para atender as demandas do mercado. Na base desta sociedade estão aqueles alienados do processo de produção e consumo; não participam do processo de acumulação de capital, tampouco possuem patrimônios. No topo estão os comerciantes (capitalistas), que detém o capital para a realização dos jogos de trocas.

No início desta resenha foi destacado objetivo do autor em apontar os condicionantes que levaram o capitalismo ao êxito no mundo Ocidental. O termo "condicionante" foi, aqui, utilizado para designar um conjunto de fatores que deram condições à instalação do capitalismo. Foi utilizado para reforçar a ideia do autor de que o capitalismo nada criou, se apossou de estruturas já existentes, que lhe deram condição de desenvolvimento. Tal afirmativa fica evidente na quarta sessão desta obra, Braudel afirma que a cumplicidade ativa da sociedade, com suas diferentes hierarquias (social, política, religiosa, militar e outras), foi a maior condição para o triunfo do capitalismo.

Atores sociais internos à sociedade de cumplicidade, dependendo de sua posição hierárquica, puderam apoiar ou inibir, conjuntamente ou não, o desenvolvimento do capitalismo. O Estado é o ator de destaque para o triunfo do capital. Ele ganha força no discurso do autor quando este afirma que "o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado" (BRAUDEL, 1987, p.44). O capitalismo não é criador do Estado, mas saberá dele participar e criar as alianças necessárias para delas se beneficiar. No ocidente, o Estado cúmplice da emergência do capitalismo possibilitou o acúmulo privado do capital, gestando famílias de ricos e poderosos.

A tese de que o capitalismo só poderia ter triunfado no ocidente, porque se identificou com o Estado, é de forma competente defendida peio autor. No oriente, segundo o autor, o Estado não alimentou o desenvolvimento de famílias abastadas. Não lhes deu condições políticas para manterem-se no poder, tampouco para que pudessem realizar uma acumulação privada de bens e patrimônios. A falta de aliança entre o Estado e interesses privados foi, aqui, o forte empecilho para o triunfo do capitalismo no oriente.

Por fim, este trabalho de Braudel parece mesmo sugerir que o capitalismo está, assim, p sujeito, condicionado às hierarquias do Estado, que por se apresentar diverso, no tempo e no espaço, imprimiu-lhe (ao capitalismo) diferentes processos de formação no ocidente; impediu-lhe de avançar e consolidar-se no oriente. Acerca das diferentes aliarwas que o capitalismo fez com o Estado, no ocidente, afirma BRAUDEL (1 987, p. 46): "Quantas as sociedades, tantos os caminhos para a ambição dos indivíduos. Tantos os tipos de êxito",

Esta obra de Fernand Braudel, ao mesmo tempo em que busca elucidar o processo de p formação do capitalismo, cria condições para alimentar, com mais vigor, as discussões e querelas sobre a temática. Está evidente, em todo o trabalho, que o autor pretendeu formar uma ideia modelar acerca da formação do capitalismo no ocidente. O modelo desenvolvido por Braudel, não é, entretanto, como poderia parecer, inflexível ou engessado nas determinações por ele mesmo construídas; seu modelo é maleável para suportar as comparações e ponderações que o próprio faz ao longo de todo trabalho. Entretanto, quantas questões a discussão de Braudel, neste trabalho, suscita, aquecendo novas dúvidas, sejam para aqueles que estão, há muito, debruçados sobre o tema, seja para aqueles cujo tema é novo e instigante?

O capitalismo fulgurou, em primeiro plano, no ocidente; e isto é inconteste! Braudel e demais estudiosos parteiT1 dessa evidência espacial para dar legitimidade ao processo histórico que afirmou o ocidente como o berço do capitalismo. Braudel selecionou, aqui, os processos históricos, particulares ao ocidente, que alicerçaram a demonstração de sua tese; contudo, não ousou através da mesma (tese) dar por encerrada a questão. Nesta seara, frente à profusão de questionamentos, tal atitude não lograria em êxito. A formação do capitalismo, no ocidente, talvez seja um dos questionamentos, dentro da ciência histórica, de Ilhais longa duração. Provocada, constantemente, dentro das diferentes correntes historiográficas está fadada a alimentar, sempre, novos estudos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referência

BRAUDEL, F. os Jogos da Troca. In:         A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. 27-50.

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