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Por Lilia dos Santos Seabra

KLEIN, Herbert. La esclavitud africana em America Latina y El Caribe. In: Comunidades esclavas y cultura afroamericana. Madrid: Alianza Editorial, 1986. p.107120.

 

Esta obra de Herbert Klein vem trazer à luz questões referentes ao universo sociocultural dos escravos africanos na América Latina e no Caribe. Embora, em todo o corpo do trabalho, o autor se refira à escassez de dados e informações acerca da dinâmica da vida social e cultural dos escravos nas áreas em questão, seu trabalho reúne ricas informações que, certamente, são importantes referências para o desenvolvimento de pesquisas, que buscam contribuir para a elucidação das particularidades do quadro da escravidão no Novo Mundo.

Embora o autor trafegue, a título de exemplificação, por diversos países e regiões da América Latina e do Caribe, em um trabalho circunscrito na seara da História Comparada, a maior contribuição de Klein está em entender e caracterizar aspectos socioculturais mais gerais da vida dos escravos africanos que aportaram na América Latina e Caribe. Tal postura metodológica parece estar associada às dificuldades, por ele mesmo anunciadas, na obtenção de fontes e dados, que possam substanciar qualquer discussão mais detalhada de caráter comparativo; principalmente, àquelas referentes ao escravo negro ou demais classes sociais desfavorecidas no jogo do processo de colonização e de dominação das áreas em questão.

Apesar da afirmativa acima, Klein não se furtou, nesta obra, em tecer algumas interessantes comparações acerca da escravidão africana nas regiões estudadas. Deixou, com isso, entretanto, um leque de questões, que evidenciou grandes lacunas acerca do conhecimento da condição do escravo africano nas áreas em questão; bem como, reforçou a necessidade de novas investidas acadêmicas no interior da História Social e Comparada, que possam ultrapassar o atual estado da arte sobre a escravidão africana no Novo Mundo, como já foi anteriormente anunciado.

Para atender ao objetivo de seu trabalho - trazer à luz o universo sociocultural do escravo negro na América Latina e no Caribe - Klein toma como estratégia metodológica, discorrer, primeiramente, acerca da condição social do escravo, construindo, com isso, o suporte necessário para desenvolver suas teses sobre a edificação da cultura singular do negro no Novo Mundo. O texto discursou, então, sobre as questões referentes à posição social do negro na sociedade, sua estrutura familiar, práticas sexuais e matrimoniais, religião, formas de habitação e espacialidades associadas, evidenciando as condições para a construção da cultura, hoje definida como afroamericana.

Tal singularidade acerca da cultura do negro, nas áreas acima destacadas, está resumida na obra de Klein pela expressão "amálgama cultural". Assim, para o autor, a cultura produzida pelos negros na América e Caribe tem caráter amalgâmico entre diferentes grupos étnicos; ou seja: se constituiu da mistura de vários elementos componentes das culturas do branco colonizador, do negro africano (e suas multiplicidades de origens culturais) e, em escala muito mais tímida, do nativo indígena.

A nova produção cultural do africano na América, fruto do hibridismo étnico-cultural, já destacado, não se constituiu, entretanto, um bloco monolítico. Klein destaca formas de culturas afroamericanas que, resultaram da tensão do jogo travado entre brancos e negros no decorrer do processo de colonização da América Latina e Caribe. Estratégias de subordinação do negro imposta por parte do branco - e estratégias de resistência desenvolvidas por parte do negro constituíram os polos de tensão na produção da cultura afroamericana e suas variantes espaciais. Embora se possa falar em "aspectos gerais" da cultura afroamericana, que permearam todas as áreas estudadas, é verdadeiro, também, afirmar, sobre as variações desta em algumas áreas específicas da América e Caribe (como no Brasil, Haiti e Cuba), que foram evidenciadas, apenas, após a abolição do cativeiro nestes países.

O trabalho destaca diferentes estratégias de subordinação do negro às intenções do branco. A busca por negros de diferentes grupos étnicos distintos, principalmente, em relação aos idiomas falados, constituiu, talvez, a estratégia primeira de dominação empregada. Negros com diferentes identidades culturais e línguas, quando juntos pelo trabalho forçado, estariam condenados à perda de suas origens, facilitando o processo de dominação branca. Assim aconteceu com as línguas maternas dos negros, que foram substituídas por outras as línguas crioulas decorrentes de um verdadeiro hibridismo linguístico, com empréstimos semânticos das línguas europeias e africanas.

Klein mostra, ainda, que as estratégias de dominação empreendidas pelos brancos aos negros; bem como, as estratégias de resistência empreendidas pelos negros em relação ao branco estiveram associadas a duas condições sociais importantes do negro: a autonomia e o acesso ao saber. A autonomia se refere à condição de "liberdade" conferida ao negro dentro da sociedade escravocrata. Ser mais ou menos vigiado na execução de seu trabalho, assim como colocar-se em posição de prestígio, dependendo da natureza da tarefa executada possibilitou ao negro adequar-se aos interesses do dominador; bem como, ter a liberdade necessária para engendrar formas de resistência ao regime de opressão em que eram submetidos. Alguns escravos tiveram a oportunidade de desenvolver suas qualidades em função das tarefas realizadas. Artistas, artesãos, tropeiros e outros trabalhos autônomos foram condições para o reconhecimento e estima de suas funções por parte de seus senhores, colocando-os em uma situação de prestígio junto aos seus e possibilitando uma maior integração à sociedade dominadora. No Brasil, escravos que executavam o transporte de grãos — reconhecidos como os "reis dos escravos" - obtiveram privilégios e prestígios.

O acesso ao saber constituía outra fonte de prestígio na sociedade. Ler e escrever a língua europeia, assim como, o árabe, se apresentava como um instrumental de grande valia. Entre os escravos esta qualidade era de muito prestígio. Constituía um atributo associado, na grande maioria das vezes, aos escravos urbanos, com tarefas mais autônomas ou servidores domésticos, No Brasil, o domínio do árabe, possibilitando a escrita e a leitura do Corão, se apresentou como importante instrumento de organização social e política dos negros de toda a área do Recôncavo Baiano, dando condições aos escravos de estruturação de uma das maiores rebeliões de resistência acontecidas na história brasileira — a Revolta dos Malês. Outrossim, a leitura e escrita de línguas europeias conferiam, ainda, aos escravos, posições de mediadores entre escravos e homens brancos. Esta posição, de contato entre dois universos sociopolíticos (do negro escravo e do branco), colocou o escravo detentor das línguas europeias como um elemento importante na configuração de estratégias de resistência ou de colaboração junto às estratégias de dominação por parte dos senhores brancos.

A constituição familiar permitida ao escravo na América Latina e no Caribe, segundo o autor, foi outra importante estratégia em prol da estabilidade social por parte da sociedade escravocrata. Casamentos oficiais, realizados pela Igreja, ou frutos de uniões livres (a grande maioria) eram reconhecidos socialmente como uniões estáveis, assim como as unidades familiares deles decorrentes. Da mesma forma, era admitida ao escravo, a autonomia para o controle e gestão interna às relações familiares.

As liberdades referentes aos matrimônios se estendiam em relação às práticas sexuais, estabelecendo, inclusive, um complexo vínculo de parentescos pouco entendido, ainda, entre os historiadores, frente à falta de dados acerca do assunto, segundo o autor. A liberdade das práticas sexuais foi acompanhada, entretanto, por uma série de regras de controle: o impedimento de casamentos entre irmãos e entre primos consanguíneos foram, no texto, mencionadas. Outras regras referentes ao casamento e às heranças foram, também, estabelecidas com autonomia pelo escravo: regras de transição de propriedades, de  comportamento entre cônjuges ou de adoção de sobrenomes são alguns exemplos,

Utilizando-se de muitos exemplos, o autor mostra, a todo tempo nesta obra, que muitas condições permitidas aos escravos, ora facilitaram o processo de dominação por parte de seus proprietários, ora facilitaram a identificação e o reconhecimento, por parte dos mesmos, da condição em que viviam, alimentando diferentes estratégias de resistência. E mais: que a construção cultural original afroamericana, anteriormente referida, se deu em função do oportunismo das condições sociais em que o negro foi submetido. As regras referentes ao casamento, à transmissão de propriedades ou de adoção de sobrenomes, acima destacadas, foram mescladas de regras trazidas pelo europeu ou pelo negro em sua origem africana, em algo original, que surgiu com o passar do tempo. Uma cultura amalgâmica, que embora apresente elementos pertinentes à cultura de negros e brancos, se caracteriza pela sua particularidade.

Esta obra de Klein aponta, ainda, o desenvolvimento do espírito comunitário como uma importante condição para a construção da cultura afroamericana nas áreas em questão, A construção de espaços próprios para a moradia dos escravos, muitos deles reproduzindo a vida comunitária aos moldes africanos, funcionou como estratégia de reforço de identidades e minimização de suas condições de subordinação, alimentando a vida comunitária, Alguns povoados se desenvolveram a partir de espaços destinados à moradia, à vida comunitária dos escravos ou às áreas agrícolas, exploradas pelos escravos em seu próprio benefício. Apresentavam elementos da cultural dos escravos e proprietários, em uma configuração espacial original na América Latina e Caribe.

Talvez, as novas religiosidades, surgidas nas áreas estudadas, sejam os mais evidentes resultados do que Klein denominou de "amálgama cultural", Fruto do sincretismo das crenças africanas e do cristianismo monoteísta, as novas religiosidades se formaram entre os séculos XVIII e XIX, ganhando autonomia no século XX. E curioso observar, que a constituição dessas novas religiosidades esteve associada às diferentes estratégias de dominação por parte do branco e de resistência por parte do escravo. O sincretismo de crenças se deu pela aceitação estratégica das religiosidades, num processo de relativa tolerância, respeito e integração de ambas as partes. Vestígios da cultura religiosa europeia estão visíveis nas novas religiosidades que se formaram na América Latina e Caribe; bem como, são também facilmente identificáveis vestígios do universo de crenças africanas na religiosidade europeia.

A tentativa inicial de aproximação da religião europeia das crenças africanas e posterior eliminação das mesmas por parte do europeu foi lograda ao insucesso, exigindo do europeu uma tática mais conciliatória, absorvendo em seu universo religioso aspectos das crenças africanas, Por outro lado, as crenças africanas originais não sobreviveram ao tempo, Algumas, em seu aspecto mais original desaparecem com as novas gerações de escravos; outras se deixaram penetrar por elementos estranhos a elas com a deliberada intenção estratégica de sobrevivência. O fato mais concreto, entretanto, deste jogo religioso de forças está na emergência de expressões religiosas únicas e particulares às áreas em questão — as religiões afroamericanas - representadas, por exemplo, pelo Candomblé na Bahia, o Vodu no Haiti e a Santeria em Cuba.

Por fim, o autor discute a importância das confrarias e irmandades enquanto espaços necessários à consolidação da nova cultura afroamericana emergente. Pode-se entender a importância das mesmas com a mesma lógica com que os demais temas foram tratados pelo autor. Elas representavam uma clara estratégia de concessão por parte do europeu para a manutenção do sistema, facilitando a adesão dos escravos ao mesmo, Ao mesmo tempo esses espaços se constituíram como o lugar onde o espírito de pertencimento c identidade à comunidade escrava se afirmava, São espaços afirmativos da cultura afroamericana, resultados expressivos da "amálgama cultural", atentamente observada por Klein em todo percurso deste trabalho.

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