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Por Lilia dos Santos Seabra

SCHULTZ, K. Perfeita civilização: a escravidão e o desejo de metropolizar uma capital colonial. Rio de Janeiro, 1808-1821. Revista Tempo, Niterói, v.12, n. 24, p. 5-27, jan. 2008. Disponível cm: <llttp:www.historia.uff.br Acesso em: outubro. 2014.

Esta obra de SCHULTZ (2008) tem como palco o Rio de Janeiro, após a chegada da família real e da corte portuguesa ao Brasil. A autora concentra seus estudos entre os anos de 1808 e 1821, com uma questão original e ambivalente: a imperiosa tarefa de metropolização da capital da colônia - para atender aos anseios e desejos cortesãos europeus e a necessidade de manutenção do sistema escravista - sustentáculo da economia colonial. Toda a obra é conduzida, assim, com intuito de destacar a tensão existente, no período em questão, entre a necessidade de modernizar, civilizar e metropolizar o Rio de Janeiro e a inconveniente, porém necessária, presença da escravidão negra no país.

Com uma extensa bibliografia, que inclui obras que vão subsidiar as análises quantitativas, que faz no corpo do trabalho; bem como, documentos que possibilitam a análise de discursos de época, no período em questão, a autora realiza um debate, o qual tem como finalidade apontar as contradições internas ao projeto e ao processo de metropolização do Rio de Janeiro.

A profundidade do projeto civilizacional e de metropolização, imposto à cidade do Rio de

Janeiro, foi anunciada em todo percurso da obra. SCHULTZ (2008) observa as severas mudanças pretendidas na estética, no comportamento e na mentalidade do cotidiano da capital da colônia. Construções de prédios públicos, de casas residenciais, da escola de medicina, da biblioteca real, das academias reais são alguns dos exemplos de alterações efetivas ocorridas na cidade, Somam-se a elas, a tentativa e esforços, por parte da elite local, de absorção dos hábitos e atitudes, que refletiam as etiquetas cortesãs europeias.

A vinda da missão cultural francesa, nos anos posteriores à vinda da família real portuguesa - com a criação do Museu Nacional e da Escola Nacional de Belas Artes, reforça os intentos do projeto português para a cidade.

As fortes alterações no cotidiano urbano da cidade, segundo a autora, enfraquecia a relação, até então estabelecida, entre metrópole e colônia. O Rio de Janeiro deveria, agora, se comportar como uma metrópole, aderindo a uma série de mudanças capazes de refletir o seu novo status, Não obstante, para aderir a este novo comportamento desejado, e implantar as mudanças pretendidas na cidade, a autora observa a necessidade de um projeto estratégico de repressão urbana, o qual veio a se efetivar com a pronta criação da  Intendência Geral da Polícia.

O projeto da Intendência Geral da Polícia é reforçado pela autora. Fica claro em todo trabalho, que as alterações provocadas na cidade não lograriam êxito sem as originalidades da "boa polícia" na formação de "vassalos úteis". Para a criação de uma nova metrópole foram compartilhadas estratégias de cunho repressivo e moralista. Ações punitivas e outras cívicas / morais / educativas compunham o elenco de estratégias implementadas pela polícia.

Ênfase é dada, na obra, às estratégias policiais destinadas aos mais pobres - em especial aos mulatos, mestiços e negros. Ações beneficentes (oferta de trabalho nas fábricas) e punitivas / corretivas (presos designados aos trabalhos compulsórios em favor do Estado) aplicadas aos mais desprovidos faziam parte de uma tática, que angariaria simpáticos e adeptos ao projeto político-social português no Rio de Janeiro. Esta questão (relativa às estratégias policiais para a implantação do projeto civilizacional no Rio de Janeiro) é, aliás, o ponto de inflexão das políticas públicas portuguesas no Rio de Janeiro, segundo a autora. Sem dúvida a complexidade das questões sociais na capital da colônia — que buscava metropolizar-se exigiu o esforço de colocar em prática o espírito ilustrado, onde a disciplina, aliada (ou não) à punição pudesse funcionar como um instrumento coercitivo da ordem social e da obediência ao soberano.

Contudo, o espírito ilustrado pretenso transformador das relações sociais para a metropolização do Rio de Janeiro esbarra, segundo SCHULTZ (2008), num forte empecilho a presença da escravidão, Num discurso de compromisso dialético, a autora observa, aqui, a convivência indesejada /entre as propostas moralizantes do iluminismo português e a realidade local inexorável: uma economia dependente para o seu total funcionamento da mão de obra escrava, que compunha cerca de 50% da população da cidade, após a chegada da família real.

A inexorabilidade da escravidão na cidade estava associada à grande necessidade da mão de obra africana em atividades rurais e urbanas. Incompatível era a presença da escravidão na atual conjuntura; porém, impossível era a sua exclusão da economia local, Para D contornar o quad1'0 sociopolítico e econômico da escravidão, frente à necessidade de p metropolização do Rio de Janei1'0> a autora destaca a cautela e a originalidade das ações da Intendência Geral da Polícia. Diante da contradição entre o projeto de espírito iluminista português e a escravidão na cidade, a polícia teve que criar alternativas para driblar a inconveniência da escravidão.

 


A escravidão obstaculizava os ideais de progresso, além de se apresentar como uma problemática de ameaça à ordem pública. A grande população africana e afro-brasileira era o problema, cuja equação seria difícil de resolver. Como se sustentaria a economia da nova metrópole sem o braço escravo na produção de alimento para o mercado externo e interno? E para as atividades urbanas, que crescia consideravelmente após a chegada da família real? Ao mesmo tempo, a libertação deste grande contingente populacional poderia se constituir na ampliação da vadiagem e da insubordinação.

A Guarda da Polícia, inicialmente, foi o aparelho destinado à repressão e à manutenção da ordem (está sempre na eminência de ser surpreendida pela sublevação). Criada pelo intendente Geral da Polícia Paulo Fernandes Viana, a Guarda Real de Polícia da Corte, tinha como objetivo garantir a ordem pública coletiva e individual em um momento tão conturbado para a Intendência, quando a cidade deveria ser preparada para as obras públicas de acomodação da família real e de toda a corte,

Dados quantitativos, utilizados pela autora, apontam que a grande maioria das apreensões

feitas, no período em questão, pela Guarda da Polícia, era de escravos. "As razões dadas para essas detenções variam entre roubo, perturbação da paz, posse de arma, assalto e homicídio, fuga e capoeira" (SHULTZ, 2008, p, 16-17), associada, comumente com atos

de violência. Os açoites em praça pública e serviços forçados foram algumas das punições destinadas aos escravos presos.

O processo de metropolização do Rio de Janeiro teve, então, na escravidão a sua grande contradição, O jogo das contradições internas, na busca de equilíbrio social na nova metrópole, é constantemente reforçado pela autora, mostrando o caráter original, já acima mencionado, do projeto de metropolização da cidade. A autora observa como a intendência teve que dar conta de tais contradições para a manutenção de uma metrópole vulnerável, num equilíbrio instável, à beira do confronto das ambivalências produzidas pelo projeto de metropolização português.

() controle da ordem pública, inclusive os castigos impingidos aos escravos, foi assumido, a parti de 1814, pela Intendência. Independente das questões que levaram esta última a assumir a função destinada a Guarda, a autora observa a problemática vivida pela Intendência na manutenção da escravidão e implantação de um projeto ilustrado.

 

Ao mesmo tempo em que castigava o escravo, a Intendência garantia a sustentabilidade da ordem pública e a manutenção do projeto peculiar de metropolização nos trópicos aos moldes europeus. Ao castigar e prender escravos práticas indigestas ao espírito iluminista  a Intendência garantia um exército disponível à realização das obras públicas tão necessárias. Ao mesmo tempo em que prendia escravos e os desviava para as obras públicas, criava animosidades junto aos senhores de escravos; que, contraditoriamente, reconheciam a Intendência enquanto um aparelho da ordem pública.

Castigos rígidos aos escravos, entretanto, não deveriam compor o elenco de punições, Sabia a Intendência, que ao executá-los, colocaria em perigo a tênue balança pelo qual todo o projeto civilizacional da cidade se mantinha. Entendia, assim, que o horror da escravidão deveria ser mantido em moldes mais brandos, onde punições e concessões pudessem conviver e compartilhar de um mesmo objetivo: a manutenção da escravidão na metrópole. E com este raciocínio que a Intendência persegue todos aqueles — brancos e negros que possam ter aspirações abolicionistas, impulsionadas pelos movimentos de libertação no Haiti (Ilha de São Domingos); ao mesmo tempo em que compreende que deve possibilitar a reunião de escravos, para amenizar as animosidades, embora estas (reuniões) sejam entendidas como possíveis focos de resistência,

A educação moral, cívica e religiosa; bem como, os hábitos de higiene necessários à reprodução controlada da escravidão são desejados. A Intendência sabe que a educação dada aos escravos é uma forte ferramenta de controle social; porém, reconhece que os novos habitantes europeus da cidade (ávidos por lucros imediatos) não estão dispostos a oferecê-la a seus escravos, assim como faziam os antigos senhores coloniais. Esta questão, observada pela autora, como exemplo das realidades dicotômicas da nova metrópole, ilustra muito bem o complexo trabalho realizado para a sustentação do projeto de metropolização da cidade por parte da Intendência, A Igreja, os tribunais e a própria Intendência são os novos atores sociais que estarão em ação para a garantia da educação moral, cívica e religiosa dos escravos, objetivando a ordem pública e individual.

 

Enfim, um projeto peculiar, com base e inspiração nos modelos civilizacionais europeus foi implantado no Rio de Janeiro; contudo, flexibilizado pela realidade da escravidão, pela mentalidade local e necessidade de manutenção dos moldes de produção econômica.

Esta obra de SCHULTZ (2008) abre espaço para outras discussões adjacentes à temática. Embora a autora tenha objetivos bem claros neste trabalho, muitas questões merecem investigação futura. Fica clara a necessidade de investigação mais acurada acerca do papel da Intendência no processo de implantação do projeto de metropolização do Rio de Janeiro. As estratégias que a Intendência adotou para tal fim, certamente, devem ser estímulos para novas pesquisas; assim, como os motivos pouco claros, observados no texto, sobre a extinção da Guarda Real.

Enfim, a obra é compromissada com o espírito científico: cobre lacunas, deixadas na história brasileira e contribui com o enriquecimento do arcabouço teórico e metodológico da historiografia nacional.

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